Sentimentos usados? Aqui! Nesta venda de garagem!

A utilidade é a nossa maior dor de cabeça. Desde os objectos às pessoas, tornar algo útil é um problema. Agarrar na embalagem usada e perceber que dali pode surgir um objecto novo, belo e útil, faz com que olhemos o mundo com estranheza e, por isso, pedir que façamos a reciclagem é ainda uma luta diária. É-nos difícil transformar o mau em bom e só não hesitamos em fazê-lo, quando as rugas aparecem  na cara e queremos uma cara nova (bem cara, por sinal).

Mesmo para os menos impressionados com o fenómeno, há sempre uma data de provérbios populares que nos encorajam a desconfiar da mudança “inútil para útil”. Por exemplo, “pau que nasce torto, nunca se endireita” é um desses provérbios clássicos que promove a descrença. E outras descrenças mais íntimas que agora não vêm à baila.

Para contrariar esta tendência, chegamos nós, carequinhas e ex-carequinhas, cheios de power e com falta de pimenta na língua durante a infância, a querer fazer do nosso cancro algo útil.

Algo útil com o nosso cancro? Mas como tornar útil o que nunca prestou?

Percebi, que podemos fazer uma venda de garagem com o nosso cancro. Agarramos em todas as coisas que ele já nos fez sentir e pomos à disposição, para que outros as conheçam. Naturalmente, os interessados conhecerão todos os nossos sentimentos em “segunda mão”, com menos brilho e já sem etiqueta, porque as situações e os sentimentos  já foram vividos por nós, que os estreamos novinhos em folha. Nesta entrega de sentimentos, experiências, vidas, histórias, os outros, que os adquirirão a metade do preço, conhecerão um pouco mais de nós mas, mais do que isso, terão um monte de experiências nossas que lhes poderão ser úteis também. Nessa venda de garagem, apresentamos numa montra “mais ou menos” o nosso percurso atribulado e, esperamos, ansiosamente, que alguém se interesse por ele. Obviamente, o nosso cancro não valerá nem um euro, mas vale, e isso prometo-vos, uma motivação e inspiração para outros que, por vezes, buscam “nestas vendas de garagem”, sentimentos alheios para perceber os seus.

Os mais desconfiados, poderão achar que estamos a querer apenas despachar o que não presta, o que não é, totalmente mentira. De facto, partilhar, permite que fiquemos mais leves e, novamente como diz o povo cheio de razão, “coitado de quem as ouve, porque quem as diz, fica aliviado”.

Queridos Carequinhas: Seja em leilões, em vendas de garagem, em feiras, em livros, em jantares, partilhem. Alguém há-de querer. Há-de servir para um, o que um dia já vos serviu a vós. Apesar de quererem ver-se livres do mau, não abdiquem de todas as histórias vividas – garanto-vos que irão ser precisas, sobretudo naqueles dias egoístas em que poderão andar mais necessitados de ser lembrados de tudo aquilo pelo qual já passaram.

PS – Viver más experiências é, no fundo, a mesma coisa que lidar com a moda. Usa-se, depois não se gosta, mas um dia acaba-se por se ir ao armário vestir o que um dia já se usou, só para nos relembramos como éramos naquele tempo. Bem tolos por sinal. E mais magros.

Marine Antunes