Cancro com humor_ Geral

Encontros Inesperados de 3º Grau.

Escrevo este texto na companhia de Ludovico Einaudi. Não procurei a banda sonora do filme “Amigos Improváveis” por saber que iria escrever sobre encontros inesperados. Fi-lo sem querer. Escrevo sobre acasos que se tornam óbvios, enquanto oiço a música de um filme que nos transporta para a improbabilidade dos encontros que nos salvam – um rapaz saído da prisão, aparentemente desligado, demasiado descontraído, sem talento e vontade de ser cuidador, que se torna o melhor amigo de um homem sem alento, tetraplégico, que precisa que cuidem dele. Um homem que salva o outro, supostamente sem ter como o fazer.

Oiço uma das minhas bandas sonoras favoritas, com a certeza que os acasos nunca são acasos. São casos raros sim, mas não são acasos.

Tudo são encontros. Preciso deles para ver a beleza quotidiana. Gosto de me enganar na rua e encontrar uma outra ainda mais bonita do que estava à espera e de saber, racionalmente, que estou no lugar errado com a certeza intuitiva e inexplicável que aquele errado é o certo.

Não há quem não tenha estado numa casa, num momento em que não era para estar e, mais tarde, recebe uma carta da vida a dizer que aquela era uma paragem obrigatória. Todos nós já entrámos contrariados num emprego que, à partida, nos tirou mais do que aquilo que nos deu mas que se mostrou ser um emprego abençoado por, pelo menos, termos tirado dali uma valiosa lição. Todos nós já tivemos um cancro (real ou emocional) que não era suposto fazer parte da lista das coisas que precisávamos viver mas que se mostrou ser o ponto de partida para alguma coisa. Porque todos nós já saímos para a despedida, sem a noção de que aquela era também a nossa chegada a um lugar melhor.

Acho ainda mais estrondoso quando isso acontece com as pessoas. Sobretudo quando tropeço na pessoa que não era para mim.

Tu também tens uma pessoa que não era para ti. Todos nós temos. Todos temos uma pessoa que não era para ser nossa. Todos nós temos um sorriso que, inicialmente, não nos era destinado mas que acabou por nos salvar os dias. Todos já fomos um “bom dia” que não nos era direcionado. Todos nós já fomos apresentados por educação, sem querer, sem intenção, porque calhámos estar ali. Todos nós já nos enganámos no quarto que era para ser visitado e ficámos por lá um tempo a conversar, naquela cama inesperada que não era suposto receber-nos, tornando-nos a melhor visita do dia.

Todos nós já fomos a pessoa que não éramos para ser.

Lembro-me que, quando ele estava na fase final da sua vida terrena, ter surgido o convite da Liga Portuguesa Contra o Cancro para viajar para os Açores, com o propósito de apresentar a Palestra Cancro com Humor. Aquela era a pior altura para o fazer. Plausivelmente, não tinha como fazer rir alguém. Mas, felizmente, segui a minha intuição e fui.

Fui para o lugar errado, na hora errada, fazer o errado, porque acreditei que tudo isso era o certo.

A essa viagem, além do meu pai que foi comigo, juntaram-se outras pessoas que não conhecia, e juntas, foram o meu encontro de 3º Grau. Não era, à partida, importante que surgissem naquela fase da minha vida, não foram escolhidas por mim, não as conhecia sequer. Convivi com cada uma destas pessoas durante três dias e, foi com elas, que chorei o que ainda não tinha chorado, desabafei o que ainda não tinha desabafado, percebi o que ainda não tinha percebido. Voltei renovada e pronta. Voltei apavorada sim, mas com a certeza que ficaria bem. Ele partiu pouco tempo depois e eu não sei o que teria feito sem aquelas pessoas improváveis.

Todos nós já nos cruzámos com alguém no nosso pior, sem nunca desconfiarmos que dali sairia o nosso melhor.

Os encontros inesperados de 3º grau são, para mim, os melhores. Não foram sugeridos, não tinham “razão de acontecer”, são libertados de lógica, de certeza, de motivo. São como aqueles primos que amamos como irmãos, apesar de na árvore ginecológica virem em 3º grau. São o pai adotivo que surgiu sem ser convidado, mas que tornou o nosso mundo melhor; são o professor substituto que nos ensinou a imaginar; são o lugar de autocarro que nos foi tirado para nos sentarmos no outro sítio, que afinal tinha de ser o nosso.

Todos temos uma pessoa que não era para nós. Todos nós já fomos um grande acaso. Uma grande sorte. Tu também. Tu também já foste improvável para alguém que agora te tem como certo.

Os encontros inesperados de 3º grau são mais. São também o início. São os acasos antigos, como a viagem inesperada do nosso bisavô para outro lado do mundo que acabou por definir que existamos agora neste tempo. Com quem ele se cruzou, por acaso, numa outra vida, numa outra geração, definiu que nós existíssemos hoje.

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Cada encontro acidental do nosso bisavô foi um encontro destinado nosso. Porque “algo tão simples como um bater das asas de uma borboleta no Japão pode causar um tufão do outro lado do mundo”.